O Cérebro, a Sociedade e a Habilitação Neuropsicológica

 
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A Habilitação Neuropsicológica é um tipo de terapia diferente daquelas mais tradicionais e às quais rapidamente associamos o trabalho do psicólogo sempre que imaginamos o que é ir ao psicólogo e fazer psicoterapia. Esta técnica foca-se essencialmente no cérebro, - o centro de todo o nosso comportamento – sendo o seu “bem-estar” e nível de estruturação o foco do trabalho terapêutico. Apesar de ainda pouco conhecida, esta abordagem tem uma sólida fundamentação científica, baseada nas ideias e teorias de L. Vygotsky, A. R. Luria, A. Leontiev e Maria Rita M. Leal, entre noutros tantos que principalmente na Rússia, México, e também em Portugal têm contribuído para o desenvolvimento científico da abordagem.

Para compreender melhor a abordagem é necessário focarmo-nos no desenvolvimento do cérebro humano, e recuarmos aos tempos em que o ser humano vivia na selva. Nessa altura existiam determinadas exigências desse meio que, cumpri-las ou não, poderia fazer a diferença entre sobreviver, ou não, na selva. Assim, o ser humano teve que se adaptar a essas exigências, ou dito noutras palavras: o cérebro humano teve que se transformar para se poder adaptar a essas exigências. Por exemplo, na selva, o cérebro teve que permitir ao ser humano a capacidade de estar constantemente atento a qualquer barulho e movimento que percebia ao seu redor, havendo a possibilidade de estar a aproximar-se um animal selvagem que o poderia atacar, e teve que criar uma série de programas cerebrais que permitiam ao Homem sobreviver e desenvolver-se na selva de forma adaptada.

O cérebro é o único órgão do nosso corpo que se transforma para fazer aquilo que lhe pedimos, assim, se o ser humano daquela altura, lhe “pedia” para conseguir estar mais atento aos barulhos que existiam à sua volta, o cérebro transformava-se para o conseguir fazer. Naturalmente que este “pedido” não se faz de forma imediata, faz-se treinando o cérebro várias vezes para uma determinada situação, para que ele “perceba” que queremos que ele seja capaz de fazer algo.

 
 

Agora voltemos aos nossos tempos atuais: um cérebro preparado para viver na selva, e que viveu milhares de anos adaptado a esse contexto, confronta-se com novas exigências que surgem das mudanças que foram ocorrendo na sociedade. Podemos pensar em ações como escrever, falar, estar em frente de um computador, estar atento numa sala de aula, participar numa conversa, ir para o trabalho, etc. e verificar rapidamente que naquela altura nada disto era exigido ao ser humano. Agora é!

Como se “pede” agora ao cérebro para conseguir fazer isso tudo? Treinando-o até que o consiga fazer. Esse treino vai-se fazendo ao longo da vida sem que muitas vezes tenhamos ideia de que ele está a acontecer, por exemplo: eu sou capaz de estar sentado em frente do meu computador a escrever este artigo porque ao longo da minha vida foi-me exigido que fizesse tarefas deste tipo (saber escrever, estar sentado, concentrado, pensar no que quero escrever, organizar um texto, etc.), o leitor, é capaz de estar sentado, atento, a ler este artigo porque, de igual forma, foi-lhe exigido desenvolver uma série de habilidades que lhe permitem agora realizar esta tarefa (por exemplo: saber ler, estar concentrado, ir pensando no que lê, associar ideias, etc.).

Os nossos cérebros foram transformados para conseguirmos fazer o que neste momento precisamos de fazer. Grande parte das exigências que a sociedade de hoje em dia nos coloca, pelos menos aquelas que nos permitem sobreviver, são correspondidas por nós porque fomos treinados para isso desde cedo pelos nossos pais/cuidadores, professores e outros adultos (se calhar sem eles mesmo saberem que nos estavam a treinar), mas por vezes, aquelas que nos permitem viver, e não apenas sobreviver, ficam aquém do que gostaríamos. E é também aí que a Habilitação Neuropsicológica entra para ajudar.

Convido o leitor a pensar num médico. Com certeza que considera um médico uma pessoa bastante diferenciada porque teve que estudar bastante para chegar onde chegou, por ter uma profissão exigente, e por isso poderíamos dizer que o seu cérebro está adaptado às exigências que a sociedade lhe coloca. Mas pensemos agora nesse mesmo médico fora do seu local de trabalho. Pode dar-se que ele seja uma pessoa com algumas dificuldades relacionais, se calhar porque não consegue relacionar-se facilmente com as pessoas, não consegue expor as suas emoções de forma correta, tende a isolar-se, ou até mesmo, em casa, tem sérias dificuldades de adotar uma atitude adequada com os filhos, ou vive uma situação de conflito e/ou insatisfação conjugal. Pode estar já a perceber que, o que parecia uma pessoa adaptada às exigências da sociedade, é-o de facto numa parte importante da sua vida, mas no final de contas, é também uma pessoa com algumas dificuldades a nível pessoal. Essas dificuldades resultam de áreas do cérebro que não estão ainda devidamente estruturadas para conseguir lidar com estas exigências (lembre-se que na selva elas não eram exigidas!). Ele é capaz de estudar, de falar sobre um tema e argumentar de forma brilhante, mas socialmente não consegue ser aquilo que lhe traria bem-estar na sua vida.

A Habilitação Neuropsicológica treina essas áreas do cérebro, “pedindo-lhes” que realizem determinados exercícios de modo a que estas áreas se fortaleçam para que no mundo lá fora consigamos lidar com as situações em que vivemos. Os exercícios e técnicas utilizadas neste treino neuropsicológico são escolhidos partindo do conhecimento do funcionamento do cérebro, da sua organização e das suas funções e tendo sempre em conta o funcionamento individual e a queixa da pessoa que procura este tipo de terapia.

Em adultos, poderá ajudar a desenvolver a autoestima, a capacidade de lidar com o stress, a assertividade, habilidades sociais, mediar o comportamento (diminuir a impulsividade), a tolerância à frustração, etc.

Em crianças, poderá trabalhar também esses aspetos, mas constitui também um forte apoio ao desenvolvimento das habilidades neurocognitivas necessárias à aprendizagem, como por exemplo as da leitura, matemática e compreensão e produção de textos. Pode também ser útil em situações que geram dificuldades escolares e sociais, como a Hiperatividade com Défice de Atenção (PHDA), a Dislexia, problemas de comportamento, entre outras perturbações e dificuldades que surgem num cérebro ainda pouco estruturado, mas com capacidade de se estruturar se for bem orientado para tal.

Para terminar, gostaria apenas de destacar algo que já poderá ter ficado subentendido pelo exemplo que dei do médico, mas que importa clarificar: a Habilitação Neuropsicológica surge como uma abordagem psicoterapêutica orientada para casos onde não existe patologia neurológica, mas sim um compromisso psicológico que interfere com o dia-a-dia da pessoa e o seu bem-estar. Ou seja, estas dificuldades não surgem apenas em pessoas que tenham uma lesão/mal formação cerebral (muito provavelmente identificou-se, ou identificou alguém com algumas destas dificuldades, e reconhece que uma lesão não é a causa), surge em qualquer pessoa que, pelas mais diversas circunstâncias de vida, não tenha sido suficientemente treinada para lidar com determinadas dificuldades que a vida e a sociedade de hoje lhe impõe. Contudo, o sucesso desta técnica terapêutica, mostra que nunca é tarde para conseguir transformar a nossa forma de estar e lidar com as situações de forma a alcançarmos o bem-estar e sucesso pessoal e profissional que pretendemos.

Manuel Romão - Psicólogo Clínico

 
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